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Dos versos que não declamei…

O muro

(Dôra Borges) Haverá sempre um muro

A separar o divino do profano Haverá sempre um muro

A separar o amor do prazer

Haverá sempre um muro

A separar o julgamento da verdade

Haverá sempre um muro

A separar a vaidade da sabedoria

Haverá sempre um muro

A separar a fé de toda heresia

Haverá sempre um muro

A separar a mentira da sinceridade Haverá sempre um muro

A separar a ternura da perversidade Haverá sempre um muro A separar certeza da imaginação

Haverá sempre um muro A separar a poesia da realidade Haverá sempre um muro A separar o ontem do amanhã Haverá sempre um muro A separar o pecado do divã

Haverá sempre um muro…

Para TODOS os muros, LIBERDADE!


O VESTIDO DE ODÍLIA

(Dôra Borges)

Bordô era a sua cor preferida. Nem pensava em comprar um vestido para a festa do seu próprio casamento que fosse de outra cor. – Absurdo!

Dizia a sua mãe com raiva.

– Você é a minha filha única e eu não admito passar por um vexame desses. – Mas mãe, eu sou diferente.

Sempre respondia Odília com ar de superioridade. A mãe, inconformada prometia não comparecer ao casamento. A filha, que nem noivo tinha, pouco se importava com essa promessa.

Anos se passaram… talvez uns 30. E nada da moça arrumar um noivo que a agradasse. A bem da verdade, ela nem procurava.

Um dia, distraída, esbarrou em um velho senhor, aparentando uns 87 anos mais ou menos, quando seguia sua sombra da tarde, pela calçada da praça de São Domingos, rumo à Sorveteria Rosa. O calor era quase insuportável e ela só pensava no sorvete de passas ao rum. O senhor assustou-se e logo foi pedindo desculpas, antes mesmo que a moça o fizesse. Odília, levantou a cabeça e sorriu com o canto dos lábios, meio tímida. Os olhos esverdeados e cheios de brilho daquele homem tocaram a alma da moça. E sem pensar, ela disse: – Vou tomar um sorvete. O senhor quer me acompanhar? Que convite mais inusitado! Não o conhecia, mas teve vontade de conhecê-lo. Do alto dos seus quase 47 anos, que mal tinha em arriscar a reputação por um desejo? Por sua sorte (ou azar!?) o velho senhor, um viúvo entristecido, aceitou, meio sem jeito, o convite. E a única coisa que Odília se lembra com orgulho é de que pediu outro sorvete. Já não precisava mais do mesmo sabor. No altar da Igreja da Glória, a moça do vestido bordô, feliz da vida, casou-se com Antenor, aquele velho senhor dos olhos “esmeraldados”, 40 anos mais velho do que ela. Sua mãe não compareceu à cerimônia, agora duplamente revoltada, pois a filha estava se casando com alguém mais idoso do que o

próprio pai. Na saída, Antenor disse com o sorriso mais bonito do mundo, pois que transbordava de uma alegria incontida, que jamais vira uma noiva com um vestido tão bonito.

E era bordô!…


A CUIA

(Dôra Borges)

Ao lado da casinha de taipa, a água cristalina escorria na bica feita de bambu cortado ao meio e deslizava para o riacho corrente, formando um lago mais à frente, no descampado da mata cerrada. O sol a pino estilava brilhos cintilantes das grossas gotas d´água que batiam nas pedras e repicavam, formando um sutil arco-íris em sua transparência esverdeada pelos arbustos que ladeavam o corte do barranco úmido. Era prenúncio de primavera e um florido ipê amarelo se despetalava sobre o telhado de palhaça do casebre do caboclo Terêncio, um jovem e forte homem, à procura de um tesouro para ofertar à Maria, sua paixão resguardada.

Sentado ao lado da bica, ele ouve um pássaro cantador que, incessantemente, entoava o seu forte canto de conquista. Era domingo e, no povoado distante, o sino repicava na capela do Bom Senhor, onde por certo as andorinhas alvoroçadas se debandavam da torre, assustadas com as badaladas estridentes.

Por aquelas bandas de Minas, o garimpo era a única esperança de que no brilho da cuia, a vida pudesse ter outra sorte. Rêncio, como era chamado pelos irmãos, levanta o chapéu velho de feltro, limpa o suor que lhe escorre pela testa e espia a corredeira chegando ao lago. Aperta os olhos para quebrar a claridade que lhe ofusca as vistas. Na mão direita, segura uma cuia feita de cabaça madura, já meio embolorada pelo tempo, com a qual costumava pegar lambaris no riacho. Envolto em pensamentos descompromissados, beirando a sonhos, olha para o fundo do poço de águas límpidas e vê num ponto reluzente, de brilho forte a resplandecer pelos raios de sol que penetravam água adentro. De sobressalto, misturando esperança com coragem, o caboclo saiu apressado com a sua cuia e mergulhou fundo em busca daquele tesouro errante. Mas no caminho tinha uma pedra… e num choque violento, o ouro se perde nas profundezas do barro sangrento. A cuia leve dançava na correnteza e seguia o seu curso. Naquele instante, o brilho da riqueza foi ofuscado pela dor e desilusão do caboclo sonhador.

Terêncio volta à bica, lava a sua mágoa e novamente assenta naquela pedra a escutar o canto, que agora lhe parece tão triste, do pássaro conquistador. Por anos a fio, ele continua ali, olhando as águas ribeirinhas à procura da sua cuia…

Na cidade ainda pacata, o sino da igreja do Bom Pastor não toca mais. O caboclo jaz na mata, sonhando com Maria e esquecendo o ouro das Gerais.


A INEXORÁVEL MARCHA DO TEMPO

(Dôra Borges)

Sorvo o tempo que se consome num tic-tac-quear de relógios incansáveis nas brancas paredes da alma e me prende e me liberta desse desajeito de viver.

Procuro o meu tempo, desfiado em rosários de preces enternecidas pela esperança branca quarando no varal, tão solitária quanto a lua que gira em suas fases, mudando estações e roubando corações, vestida de minutos que praguejam destinos.

Espio a fuga do seu tempo que balança roseiras em sopro de brisa e refresca margaridas em jardins sentimentais, despetalando os desejos coloridos de se viver em platônico amor, desfazendo sonhos e reconstruindo castelos de areia no limiar da tarde, no bater das ondas do mar morto.

Busco os resquícios do nosso tempo, perdido entre as ilusórias facetas da mentira crônica que sustenta as incoerências da nossa esperança.

Silencio o tempo, infinito e perene, derretido nas quimeras da vida nossa que não foi, não é e jamais será.

O tempo… ilusão de ponteiros.

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